sábado, 18 de outubro de 2014

Vassouras e remédios

 


Sentou-se no chão de azulejos mornos pelo sol da tarde, do quintal. Ao seu redor, uma lavanderia de cimento com as bordas quebradas, um muro que um dia foi branco, algumas vassouras de palha jogadas num canto e uma cachorrinha amarrada numa corda que devia servir como varal no dia em que foi comprada. 

Acendeu um cigarro, sem não antes tomar o cuidado de ver se não havia alguém em casa. Deu a primeira tragada e deixou a fumaça entrar nos pulmões. Não era a primeira vez que fazia isso, talvez também não fosse a ultima. A sensação era sempre a mesma, uma tontura e uma sensação de calma. Durava poucos minutos, mas valia à pena, dizia para si mesmo. Pegou a carteira de cigarros com uma das mãos e viu uma foto com algo que parecia ser algumas sacolas de lixo pretas amontoadas sobre um fundo cinza: “Fumar causa câncer de pulmão”, dizia a embalagem. Fez uma cara de nojo e colocou-a no chão novamente. Deu mais uma puxada profunda no cigarro, que nesse momento chegava a um terço. “Que se dane”

Olhou para as vassouras e pensou no caminho até chegarem ali. Compradas na feira livre, a palha delas devia ter vindo de alguma cidade pequena ou de uma zona rural das redondezas. A madeira do cabo, retirada de uma mata qualquer daquelas que começavam a ficar raras e que ele caçara rolinhas quando criança. Lembrou-se do badogue* de borracha vermelha que ganhara de um tio naquelas férias há muito tempo esquecidas. Lembrou-se também que tinha uma péssima mira com o badogue e que muitas vezes a pedra nem passava pelo gancho, batia no dedo e fazia pequenos estragos.

A cachorrinha começou a lamber seus pés. Olhou sua aparência e meditou um pouco sobre o que via. Era magra e algumas partes dos pelos das costelas e da cauda lhe faziam falta. O pescoço também tinha lugares faltando pelo, mas esses eram por causa da cordinha que lhe atava a uma das vigas que sustentavam o telhado. Ao seu lado, havia a comida (que consistia em um pirão de farinha com pedaços raros de carne) e a água. Afastou-a com o pé, não a tocaria nem que lhe pagassem( tá bom, tocaria, porque dinheiro fácil é difícil de resistir).

A história daquela cachorrinha não era novidade para ele. Chegara à sua casa como um belo e peludo filhote de vira-latas laranja. Tinha um focinho pontudo preto e molhado e latia sem parar. O latido era estridente e fazia mal aos ouvidos escutar aquela coisinha insignificante mostrando aos quatro cantos da casa o poder fatal de seus pulmões. Logo foi colocada no quintal (onde não poderia incomodar muito as pessoas) e com o tempo foi ficando maior( mas não o suficiente para parecer feroz).

-Qual é o nome dessa cachorra?-perguntou um amigo que lhe visitou um dia.

-Cachorra- respondeu prontamente.

Um dia a mãe dele resolveu dar um remédio para ela. Não que precisasse de remédio, mas quis dar assim mesmo (comprara numa promoção, e parecia difícil resistir àquele preço). A embalagem dizia para colocar uma colherinha dentro da água do cachorro e deixar que ele bebesse durante o dia. Para animais maiores, devia-se aumentar a dose. Por exemplo, uma cabra ou uma ovelha deviam tomar duas colheres na água. Um cavalo tomaria o pacote inteiro dissolvido num balde de água e assim sucessivamente (Não me pergunte a quantidade para um elefante, eu não saberia dizer).

Ela pegou um copo d’água, despejou o pacote azul claro completo. Abriu forçosamente a boca da pobre e derramou-lhe pela garganta. Não é difícil imaginar o resultado. A cachorra ficou tremendo durante uma semana, o pelo caiu e o apetite sumiu. Não rosnava para as pessoas. Não latia. Não mexia. Mas sobreviveu por algo que talvez alguém chamasse de milagre.

Ele tirou o cigarro da boca. Apagou no chão próximo a seus pés e deu uma ultima expirada, com o resto de fumaça que ainda estava no seu corpo. Um dia, se vivesse o bastante, talvez se arrependesse disso. Talvez não. Olhou para a cachorrinha e disse com um sorriso sonso que lhe era típico e que muitos sempre comentavam:

-Boa sorte para nós.





*Estilingue