domingo, 19 de fevereiro de 2017


Havia três horas que ele estava naquele buraco. O sol ardia e o brilho da luz encandecia seus olhos a partir dos reflexos que vinham das ferragens. Ao redor, o som de pequenos animais se misturava ao barulho da sua mente. Chiados que ele não sabia de que lugar do mato vinham. O capim fazia uma parte de seu corpo coçar, já que a outra estava ferida e, sabe-se lá porque, a gente tende a sentir sempre a dor mais forte. Quem se importa com uma coceirinha de mato quando sua perna está atravessada por um pedaço de aço? A dele estava, e por isso não sentia. A dor não ficava num único lugar, como todos esperam e que com isso se torne suportável. Ela se espalhava, cintilava, corroía. Como quando somos crianças e cortamos sem querer um dos dedos e temos a impressão de que algo bate ali, como se aquilo aumentasse e diminuísse gradativamente... só que num tamanho muito maior.

Olhou no telefone de tela rachada e, agora, completamente ralado. Sem sinal. O relógio marcava quatro e trinta e cinco, mas a hora podia não ser bem aquela, ele sempre mudava a hora para alguns minutos a mais, na intenção de não se atrasar e dessa vez, não se lembrava se tinha mudado coisa alguma. “Isso não importa agora”, disse baixinho, mas se arrependeu ao perceber que a boca doía demais para tentar. Constatou também que saia um liquido amarelado da boca. “Maravilha”, disse, mas dessa vez, só em pensamento.

Ali ele chorou, quis morrer, quis viver, quis ser um novo homem... mas o peso que seu corpo adquirira fazia com que qualquer decisão o impedisse. Chorou até as lágrimas secarem, sorriu até perceber que era inútil, amaldiçoou a Deus e ao mundo... tudo em vão.

Não era um dia especial, não voltava de uma festa, não voltava da casa dos pais, não tinha ido passear, não voltava da praia. Voltava, isso sim, de mais uma de suas obrigações. Ahhh as obrigações, quantas obrigações. Desde pequeno aprendeu a carregar o mundo nas costas, como o gigante antigo, amaldiçoado por seres maiores que ele a segurar os céus para que não caíssem sobre o mundo dos homens, amaldiçoado a carregar a responsabilidade do mundo sobre as costas... abençoado com o dever de proteger a todos. Se era bom ou ruim não sabia, mas isso dava a ele um sentido de ser. Seria esse o dever que faria ele ficar vivo?

“Atlas”, lembrou do nome do gigante. Nos livros de história lá estava, o gigante segurando o céu. “Como todos aqueles caras dos mitos, todo forte e poderoso, segurando o... O céu? O céu? Aquele povo fumava maconha, como pode alguém segurar o céu? E como se não bastasse aquilo, mas se fosse possível, imagina só o peso...” Qual será a causa que faz alguém segurar o peso do mundo, impedir a todo custo que outros se machuquem, saciar a fome das pessoas que gostamos...


“Mas eu sou homem”, disse ele, com o aço da perna ardendo, “Sou homem” repetiu mais enfático. “Sou homem”, gritou dessa vez com uma força na voz e uma coragem que se vira pouco em seu rosto na maior parte de sua vida. Um suor com sangue e terra corria de sua testa. “Você é um homem ou um bagaço “, ouviu a voz do pai, parecendo um sargento ao seu ouvido (seria só memória ou estava alucinando?). “Eu sou HOMEM e vá para o inferno todos os que não me ajudaram nas horas que precisei, porque agora é a hora que mais preciso e sou eu próprio que vou me ajudar”. As palavras escorriam de sua boca de uma forma bem falada, bem pronunciada, com movimentos fortes dos lábios.

Levantou nos braços o peso do corpo e dos não sei quantos quilos haviam sobre ele. Apoiou-se em uma mão e segurou as ferragens com a outra. Conseguiu sair. O custo disso foi ter mais daquele metal enfiado na perna.

Devagar conseguiu chegar até a rodovia. Foi arrastando-se, como fazem os répteis. Horas lembrava que imitava uma cobra, em outras lembrava que cobras não tinham braços como ele... arranhou-se em arbustos com espinhos, cortou-se em garrafas quebradas. Passou por uma pequena casinha, de cerca de um metro de altura, com uma cruz lá dentro. Luiz Manoel de Oliveira, estava escrito de um dos braços da cruz até o outro. Sentiu um calafrio... se as coisas não mudassem, se tornaria uma cruz ao lado daquela. Irmão daquele Luiz, que nunca viu, mas que parecia compartilhar com ele os mesmos deslizes da vida. “Sinto muito por você Luiz”.

Chegou no meio da rodovia e ficou esperando. Se alguém o visse, pararia e o levaria.


terça-feira, 21 de outubro de 2014

Desculpem, não consigo deixar a ultima postagem com as letras minusculas. Na edição fica certa, mas na postagem fica em caixa alta .

Motos, quedas e médicos

Gilvanicleberson Vestiu-se, pegou a moto e saiu. Falando assim, parece uma ação simples, mas eu precisaria contar os detalhes para que tal história ficasse interessante de alguma forma. Talvez o motivo seja só aumentar o tamanho do que digo. Talvez eu ache que assim fique mais bonito. Ou simplesmente porque o que eu desejo é só sua atenção como leitor. Seja como for,seja o motivo que for, vou aumentar a história porque simplesmente quero. Conforme-se com isso.

Muitos são os que odeiam quem conta o final das coisas. Pois eu contarei. Gilvanicleberson foi parar no hospital. De fato, sabendo o que acontece no fim, resta a curiosidade de saber o que houve no meio, logicamente. Está vendo como se deixa alguém curioso? É algo, de fato, fácil de fazer. Vamos à história.
José Givanicleberson de Andrade Fonseca da Silva Nascimento sempre preferiu ser chamado de Clebinho( não se sabe exatamente o porque). Ele colocou uma camiseta laranja, um tênis verde( daquele verde fluorescente que se costuma ver em abadás de carnaval), uma calça jeans azul( apertada nas pernas e com um bom pedaço de pano sobrando na virilha), Um boné branco com o bico reto amarelo e uma pequena corrente prateada. Passou o perfume e se olhou no espelho. “Você é o cara”( não que fosse realmente “o cara”, mas seu ego lhe dizia que sim)

Ao montar na moto lembrou-se da carteira. Desceu. Pegou a carteira. Subiu novamente. A moto era preta, mas seu jogo de rodas havia sido pintado (por ordem dele e conselho dos amigos) de rosa. Na lateral, em comic sans, lia-se uma frase de efeito, em branco: “Mim copiar é fácil, difícil é ser eu”. No para-lama dianteiro, um terço com a figura de Maria no centro e no farol, um adesivo com o contorno do Bobo Marley.

Foi para uma pequena festa que havia em um dos povoados próximos. Mas vamos pular da parte da ida para a parte da volta, pois essa é mais importante. Ele havia bebido o suficiente para pisar sem sentir os pés, mas julgava-se sóbrio o suficiente para voltar.

Desviando de buracos, de jegues e das cercas, conseguiu sair da estrada de chão e chegar à rodovia. Puxou o punho com força e conseguiu empinar a moto durante um período de tempo impressionante. Ao aterrissar, moveu-se um pouco para a direita e quase bateu em uma mulher que vinha no acostamento com um balde grande na cabeça e outro na mão (havia faltado água por ali ao que parece). Caiu, ralou-se e foi quicando para um pé de Jurema que havia numa das grotas na beira da pista.
Passou um tempo no chão e tentou levantar-se em seguida. Cortou a mão numa garrafa quebrada. Arranhou o rosto nos espinhos da árvore. Mosquitos picaram-lhe as partes descobertas do corpo (o que incluía a perna, já que a calça rasgara-se). Montou na moto e foi para o hospital.

...

No hospital tentou sorrir para a atendente, mas tudo o que conseguiu fazer foi mostrar o aparelho sujo se sangue. Mandaram esperar. Ao seu lado direito, estava um menino que se queimara com fogos de artifício; um homem mordido por um cachorro; uma senhora (que não parava de falar um só segundo sobre a filha da vizinha, com doze anos, que engravidara de um rapaz de quatorze recentemente) e uma mulher com um pano no olho. À sua esquerda, um menino jogando no celular; alguém difícil de identificar como homem ou mulher, com uma coisa esquisita pendurada no braço; e uma garota jovem com uma criança nos braços.
Gritos vinham de lá de dentro. Buzinas e sirenes vinham de lá de fora. E um carro anunciando um “nota de falecimento, convite...”, passava na rua de trás. Após certo tempo esperando, tentou falar novamente com a atendente:

-Oi! Alguma notícia do médico?

-Não senhor, terá de aguardar que ele chegue. Estamos esperando desde as oito da manhã.

-Vocês podem ao menos dar um atestado para eu apresentar no trabalho amanhã?-perguntou num tom enrolado.

-Infelizmente não -disse com um aceno de cabeça – o único que pode fazer isso é o médico ou a assistente social, mas nenhum deles está.

-Ahh... Brigado.

Saiu meio sem jeito da portaria, montou na moto novamente e tentou ligá-la. Ia para casa, não sem antes comentar para si mesmo:

- Nem quere vim trabalhar esses médico- deu um suspiro e sentiu algo doer por dentro- povo véio sem responsabilidade.

E foi embora. 

domingo, 19 de outubro de 2014


Ei Branca!



Então, eles chegaram ao sinal. Era inicio da noite e os carros conduziam as pessoas de volta para suas casas depois seu dia fatalmente frustrante. Um caminhão passou por eles e a fumaça fedida e, se a luz permitisse enxergar naquela hora, escura, aqueceu o corpo do menino. No bar do outro lado da rodovia, um homem vomitou na calçada, cuspiu, limpou a boca na manga da camisa e cambaleou um pouco enquanto praguejava a vida e uma tal de Meire que ninguém sabe exatamente quem era. Era possível ver pela luz do poste, que chuviscava, o que aumentava a sensação de frio, em contraste com o calor que fora durante a tarde.

-Tô com fome- disse a criança, com uma voz fina e um cabelo que fazia com que a cabeça parecesse maior do que realmente era.

-E eu que quero? Também to - respondeu o homem.

-Compre alguma coisa pra a gente.

-O dinheiro que eu tenho aqui só vai dar para comprar as coisas de casa no mercadinho e minha carteira de cigarros.

-Fumar parece ser mais importante que comer né?- disse o menino num tom de zombaria, o qual logo se arrependeu graças ao cascudo que lhe foi ameaçado ganhar.

Ele calou-se. Não o homem, o menino. O homem vinha o caminho inteiro fazendo piadas sem graça, contando vantagem, planejando o dia seguinte e cantando músicas sobre bebidas e raparigas. O menino vinha com uma cara de choro, e vez ou outra enxugava um dos olhos na frente da camisa, que a essa altura, já estava com alguns riscos de lodo.

O homem viu, numa das horas que o menino levantou a camisa para enxugar o rosto mais uma vez, e começou a rir chamando-o de chorão e catarrento. Parou alguns passos depois, tirou algumas notas úmidas e amassadas dos bolsos e entregou na mão de dedos finos e compridos do menino.

-vá lá em Branca e compre uns pão pra a gente.

-Quem é Branca?

-A mulher daquela lanchonete ali- disse apontando o dedo com um calo de sangue pisado e uma unha mal cortada, em direção a uma lanchonete pequena, um pouco  longe deles- tanto tempo que anda comigo e ainda não aprendeu nada, deixe de ser burro.

-Viu.

- E traga o troco, que esse ai era o dinheiro do meu cigarro.

                                                                           ...
-Brannnnnnnnnnca! Branca, Branca, ei Branca – Gritava ele no balcão

-Que é menino? Eu tô aqui.

-Branca, sabia que se você fosse da minha cor seu nome ia ser Marrom?

-Você veio aqui comprar alguma coisa ou ficar dizendo besteira?

-Quero comprar pão – respondeu com um sorriso grande no rosto de queixo pontudo.

-Acabou o pão, só tem pastel, vai querer?

-Não sei, acho melhor não, o dinheiro pode não dar.

-Quanto você tem?

-Quatro real.

- Dá.

O menino colocou as mãos, animado, no bolso para puxar as notas. Triste desilusão,  encontrou apenas um buraco por onde passavam facilmente seus dedos. Sentiu as lágrimas vindo aos olhos e saiu correndo da lanchonete, sendo quase atropelado por uma moto que ali passava feroz e imprudente. Seu chinelo saiu do pé e ele voltou para pegar e constatou que o prego que havia colocado na correia saíra do lugar. Acalmou-se, ajeitou o chinelo, e voltou para perto do adulto. Pelo jeito, o cascudo que lhe foi prometido deixaria de ser promessa.





sábado, 18 de outubro de 2014

Vassouras e remédios

 


Sentou-se no chão de azulejos mornos pelo sol da tarde, do quintal. Ao seu redor, uma lavanderia de cimento com as bordas quebradas, um muro que um dia foi branco, algumas vassouras de palha jogadas num canto e uma cachorrinha amarrada numa corda que devia servir como varal no dia em que foi comprada. 

Acendeu um cigarro, sem não antes tomar o cuidado de ver se não havia alguém em casa. Deu a primeira tragada e deixou a fumaça entrar nos pulmões. Não era a primeira vez que fazia isso, talvez também não fosse a ultima. A sensação era sempre a mesma, uma tontura e uma sensação de calma. Durava poucos minutos, mas valia à pena, dizia para si mesmo. Pegou a carteira de cigarros com uma das mãos e viu uma foto com algo que parecia ser algumas sacolas de lixo pretas amontoadas sobre um fundo cinza: “Fumar causa câncer de pulmão”, dizia a embalagem. Fez uma cara de nojo e colocou-a no chão novamente. Deu mais uma puxada profunda no cigarro, que nesse momento chegava a um terço. “Que se dane”

Olhou para as vassouras e pensou no caminho até chegarem ali. Compradas na feira livre, a palha delas devia ter vindo de alguma cidade pequena ou de uma zona rural das redondezas. A madeira do cabo, retirada de uma mata qualquer daquelas que começavam a ficar raras e que ele caçara rolinhas quando criança. Lembrou-se do badogue* de borracha vermelha que ganhara de um tio naquelas férias há muito tempo esquecidas. Lembrou-se também que tinha uma péssima mira com o badogue e que muitas vezes a pedra nem passava pelo gancho, batia no dedo e fazia pequenos estragos.

A cachorrinha começou a lamber seus pés. Olhou sua aparência e meditou um pouco sobre o que via. Era magra e algumas partes dos pelos das costelas e da cauda lhe faziam falta. O pescoço também tinha lugares faltando pelo, mas esses eram por causa da cordinha que lhe atava a uma das vigas que sustentavam o telhado. Ao seu lado, havia a comida (que consistia em um pirão de farinha com pedaços raros de carne) e a água. Afastou-a com o pé, não a tocaria nem que lhe pagassem( tá bom, tocaria, porque dinheiro fácil é difícil de resistir).

A história daquela cachorrinha não era novidade para ele. Chegara à sua casa como um belo e peludo filhote de vira-latas laranja. Tinha um focinho pontudo preto e molhado e latia sem parar. O latido era estridente e fazia mal aos ouvidos escutar aquela coisinha insignificante mostrando aos quatro cantos da casa o poder fatal de seus pulmões. Logo foi colocada no quintal (onde não poderia incomodar muito as pessoas) e com o tempo foi ficando maior( mas não o suficiente para parecer feroz).

-Qual é o nome dessa cachorra?-perguntou um amigo que lhe visitou um dia.

-Cachorra- respondeu prontamente.

Um dia a mãe dele resolveu dar um remédio para ela. Não que precisasse de remédio, mas quis dar assim mesmo (comprara numa promoção, e parecia difícil resistir àquele preço). A embalagem dizia para colocar uma colherinha dentro da água do cachorro e deixar que ele bebesse durante o dia. Para animais maiores, devia-se aumentar a dose. Por exemplo, uma cabra ou uma ovelha deviam tomar duas colheres na água. Um cavalo tomaria o pacote inteiro dissolvido num balde de água e assim sucessivamente (Não me pergunte a quantidade para um elefante, eu não saberia dizer).

Ela pegou um copo d’água, despejou o pacote azul claro completo. Abriu forçosamente a boca da pobre e derramou-lhe pela garganta. Não é difícil imaginar o resultado. A cachorra ficou tremendo durante uma semana, o pelo caiu e o apetite sumiu. Não rosnava para as pessoas. Não latia. Não mexia. Mas sobreviveu por algo que talvez alguém chamasse de milagre.

Ele tirou o cigarro da boca. Apagou no chão próximo a seus pés e deu uma ultima expirada, com o resto de fumaça que ainda estava no seu corpo. Um dia, se vivesse o bastante, talvez se arrependesse disso. Talvez não. Olhou para a cachorrinha e disse com um sorriso sonso que lhe era típico e que muitos sempre comentavam:

-Boa sorte para nós.





*Estilingue