Havia três horas que ele estava naquele buraco. O sol ardia e
o brilho da luz encandecia seus olhos a partir dos reflexos que vinham das
ferragens. Ao redor, o som de pequenos animais se misturava ao barulho da sua
mente. Chiados que ele não sabia de que lugar do mato vinham. O capim fazia uma
parte de seu corpo coçar, já que a outra estava ferida e, sabe-se lá porque, a
gente tende a sentir sempre a dor mais forte. Quem se importa com uma
coceirinha de mato quando sua perna está atravessada por um pedaço de aço? A dele
estava, e por isso não sentia. A dor não ficava num único lugar, como todos
esperam e que com isso se torne suportável. Ela se espalhava, cintilava, corroía.
Como quando somos crianças e cortamos sem querer um dos dedos e temos a
impressão de que algo bate ali, como se aquilo aumentasse e diminuísse gradativamente...
só que num tamanho muito maior.
Olhou no telefone de tela rachada e, agora, completamente
ralado. Sem sinal. O relógio marcava quatro e trinta e cinco, mas a hora podia
não ser bem aquela, ele sempre mudava a hora para alguns minutos a mais, na intenção
de não se atrasar e dessa vez, não se lembrava se tinha mudado coisa alguma. “Isso
não importa agora”, disse baixinho, mas se arrependeu ao perceber que a boca doía
demais para tentar. Constatou também que saia um liquido amarelado da boca. “Maravilha”,
disse, mas dessa vez, só em pensamento.
Ali ele chorou, quis morrer, quis viver, quis ser um novo
homem... mas o peso que seu corpo adquirira fazia com que qualquer decisão o
impedisse. Chorou até as lágrimas secarem, sorriu até perceber que era inútil,
amaldiçoou a Deus e ao mundo... tudo em vão.
Não era um dia especial, não voltava de uma festa, não
voltava da casa dos pais, não tinha ido passear, não voltava da praia. Voltava,
isso sim, de mais uma de suas obrigações. Ahhh as obrigações, quantas
obrigações. Desde pequeno aprendeu a carregar o mundo nas costas, como o
gigante antigo, amaldiçoado por seres maiores que ele a segurar os céus para
que não caíssem sobre o mundo dos homens, amaldiçoado a carregar a responsabilidade
do mundo sobre as costas... abençoado com o dever de proteger a todos. Se era
bom ou ruim não sabia, mas isso dava a ele um sentido de ser. Seria esse o
dever que faria ele ficar vivo?
“Atlas”, lembrou do nome do gigante. Nos livros de história lá
estava, o gigante segurando o céu. “Como todos aqueles caras dos mitos, todo
forte e poderoso, segurando o... O céu? O céu? Aquele povo fumava maconha, como
pode alguém segurar o céu? E como se não bastasse aquilo, mas se fosse
possível, imagina só o peso...” Qual será a causa que faz alguém segurar o peso
do mundo, impedir a todo custo que outros se machuquem, saciar a fome das
pessoas que gostamos...
“Mas eu sou homem”, disse ele, com o aço da perna ardendo, “Sou
homem” repetiu mais enfático. “Sou homem”, gritou dessa vez com uma força na
voz e uma coragem que se vira pouco em seu rosto na maior parte de sua vida. Um
suor com sangue e terra corria de sua testa. “Você é um homem ou um bagaço “,
ouviu a voz do pai, parecendo um sargento ao seu ouvido (seria só memória ou
estava alucinando?). “Eu sou HOMEM e vá para o inferno todos os que não me
ajudaram nas horas que precisei, porque agora é a hora que mais preciso e sou
eu próprio que vou me ajudar”. As palavras escorriam de sua boca de uma forma
bem falada, bem pronunciada, com movimentos fortes dos lábios.
Levantou nos braços o peso do corpo e dos não sei quantos
quilos haviam sobre ele. Apoiou-se em uma mão e segurou as ferragens com a
outra. Conseguiu sair. O custo disso foi ter mais daquele metal enfiado na
perna.
Devagar conseguiu chegar até a rodovia. Foi arrastando-se,
como fazem os répteis. Horas lembrava que imitava uma cobra, em outras lembrava
que cobras não tinham braços como ele... arranhou-se em arbustos com espinhos,
cortou-se em garrafas quebradas. Passou por uma pequena casinha, de cerca de um
metro de altura, com uma cruz lá dentro. Luiz Manoel de Oliveira, estava
escrito de um dos braços da cruz até o outro. Sentiu um calafrio... se as coisas
não mudassem, se tornaria uma cruz ao lado daquela. Irmão daquele Luiz, que
nunca viu, mas que parecia compartilhar com ele os mesmos deslizes da vida. “Sinto
muito por você Luiz”.
Chegou no meio da rodovia e ficou esperando. Se alguém o
visse, pararia e o levaria.